terça-feira, 7 de setembro de 2010

Diálogos (pt2)

Já estava anoitecendo e eu ficando bêbado, quando decidi perguntar como foi matar. Ele falou sério, mas não tirou a estampa de alegria e passividade do rosto. Falou que matar para fazer justição não era como matar de verdade. Matar de verdade, era como matar um cachorrinho. Uma injustiça. Porem matar por vingança era como matar um estuprador que molestou alguém de sua família, e foi isso que aconteceu. Disse que pegou a arma emprestada com um amigo bandido, mas que não foi preciso usa-la. Matou o filho da puta com as próprias mãos e arma comprada com o único dinheiro que tinha no mundo, atirou no lago. Mas o malandro tinha conceito na área e eu tive que ser exilado, igual Caetano Veloso e Chico Buarque, saca? Falou que a diferença entre dois homens inoscentes, um que não matou e outro que matou só pode ser percebida nos sonhos, e eu, que era psicólogo entenderia mais o por quê do que ele. Sonho muito com os olhos dele virando e escuto o som do pescoço ao quebrar-se. Só. E voltou a sorrir. Água mole e pedra dura, tanto bate até que fura, né. Contemplamos uns minutos de silencio e ele disse; Mas dor mesmo é não ver minha filha a mais de um ano. E por que não a vê? A mãe dela não deixa. Após meu incidente, comecei a beber muito, e a bebida, você sabe, me dava vontade de cheirar. Vida de palhaço não é fácil não. Ficar sempre sorrindo, contando piada, animando, precisava dar um levante. E então, e as vezes, digamos que minhas palhaçadas ultrapassavam os limites. A criançada adorava. O único palhaço que ficava pulando e fazendo malabarismo até as seis horas da manhã. Porra Pablo, eu precisava ter o seu telefone. Ele riu, pois nunca teve um. Depois continuou a falar. Minha mulher, que é evangélica, começou a ficar com medo do palhaço pipoca, entendeu agora o apelido. Claro, hoje mesmo quase ganhei o apelido de Ovo frito. Por que? Por que eu estava a conversar com um. Oh... Entendeu. É por isso que entrei para a igreja, para que as pessoas possam me enxergar com olhos melhores. Não acredito em deus. Mas quando se é pobre, sabe, as pessoas tem preconceito com esse tipo de altivismo. (Duas coisas aconteceram; não toquei mais na garrafa porrete e me surpreendi mais uma vez com seu vocabulário). Isso me fez pensar. Isso me fez pensar muito. Isso acabou com todos os meus problemas. Transformei minha angustia e minha dor de estomago em cócegas. Comecei a sorrir, virei o palhaço. Tudo faz sentido em uma vida sem sentido quando você assume que seu reflexo inexistente do outro lado do espelho, bem poderia ser o reflexo de um palhaço. Rir com respeito, como deve ser rir de um palhaço, como não se deve rir de um esquizofrênico, respeitar a loucura do outro. Se permitir ser um louco respeitado. De que me valeria querer ser a família feliz, se o garotinho travesso queria vir falar comigo e foi censurado pelos pais. De que valeria ser a família feliz e ficar vendo meu filho querendo comer a minha mulher. De que valeria ser feliz se eu sou um palhaço. É certo de que eu adoraria ter um filho, mas o mundo não me permitiria ser um bom pai, por mais carinhosa e bela que fosse a minha alma, os valores não me permitiriam ser um bom pai. Como fizeram com Pablo, eles também me julgariam.Me pendurariam na cruz. De que vale ser um psicólogo se não posso ousar, de que vale ser pai se não posso ver o meu filho, de que vale ser um falso moralista, de que vale sentir remorso de ontem, se fiz exatamente o que meu inconsciente mandou Remorso é para os fracos. De que vale confessar pecados que um dia foram desejos realizados, de que vale ficar aqui reclamando da vida enquanto tenho o palhaço Pipoca do meu lado para me mostrar o que é sofrer. Caso resolvido. Pedi a conta, e fomos embora. No final dei um abraço em Pablo, que cheirava muito mal, e lhe dei um presente. Disse a ele que seus conselhos eram deveras mais interessantes que o de todos os doutores do seminário juntos, e que ele devia largar a igreja. Ele respondeu que não sabia quem era Lacan e que eu estava bêbado. Agradeceu o presente, e disse para eu não me preocupar, que ele não dividiria nem um centavo com a igreja. Não era bobo.
Quando fui embora, o telefone tocou, era o Doutor R. – E aê? Tranqüilo? E a pesquisa? Aproveita aquela grana que você ganhou ontem para investirmos na pesquisa. Respondi que não poderia mais investir o dinheiro em ratinhos. Por que ? ele quis saber meio indignado. Por que eu gastei tudo em pipoca.

Fim

12 comentários:

  1. Erich gostaria muito de publicar no meu blog seu comentário sobre o meu comentário se me permitir, hj trabalho muito com a descontrução dos arquetipos e construindo novos mitos e pra mim suas musicas são os canticos dos novos rituais q advem destes mitos obrigado

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  2. De que vale esta vida, se a gente questiona tanto o sentido que há nela? Talvez seja apenas pra ser vivida e não entendida. Ou talvez não. Mesmo que a gente encontre o sentido real, vamos duvidar e questionar. É infinito esse reclamar do ser humano.

    E cada vez chego a mesma conclusão : O inferno são os outros.

    Já pensou em publicar um livro ?

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  3. Olá. Perdoe-me por mais um extenso comentário em seu blogue, mas não poderia deixar de falar sobre o que você escreveu. Primeiro, gostaria de lhe parabenizar pelo belo fim do seu dinheiro. Espero que o Pablo faça uso da quantia com a mesma inteligência que a figura que você descreveu faria... Agora, sobre o conteúdo do texto: o remorso, a culpa é algo intrigante para mim. Você escrevera que este sentimento é para os fracos, do que adiantaria confessar pecados que um dia foram desejos realizados. Pois é... Mas, exemplificando, quando magoamos pessoas que importam é inevitável culpa. Sofrer pode ser a única maneira de se sentir um pouco mais digno ante o outro. Mesmo que se siga em frente, o remorso estará ali para te lembrar o que tu fizeste e o que tu deverás fazer então. É um sentimento para fracos, concordo. Mas como abandoná-lo? A cobrança dos em volta, a não realização, ser falho... Isso leva ao remorso. É possível seguir em frente, mas como se livrar das amarras que estão no mais profundo do teu ser? Como se livrar de coisas pelas quais tu pode não ter tido nem culpa, mas que a culpa por aquilo e todos os sentimentos que estão unidos a ela são a única coisa que tu tem para entender o que ocorreu? Ser feliz sem ficar pensando em como se é babaca e as grades que te cercam são tão pequenas e ainda assim tu não consegues fugir delas? Bom, resumindo, o meu fascínio pela culpa é grande e eu sou uma patologia ambulante. Está aí o motivo de eu ter enveredado para a história ao invés da psicologia.

    PS: Gostaria de lhe dizer que quando a minha irmã quis me apresentar à maldita, eu inicialmente rejeitei a banda. Hoje, é uma das minhas preferidas. E os teus escritos me fazem ter uma admiração ainda maior pelo teu trabalho. Porém, se eu estou lhe importunando, pode apagar este comentário e pedir que eu pare de comentar

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  4. eu acho que li dostoiévski na idade errada...

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  5. Pode postar o que você quiser, descortinador oculto. Somos todos mitos de nós mesmos.

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  6. Deus não existe, tudo é permitido. Diriam os irmãos Karamazov, amigos de Dostoiévski.

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  7. Deixar para os meus heróis escreverem livros. Eu apenas publico os meus sonhos.

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  8. Uma figura, esse Pablo .
    Revertendo a arma infligida contra si em escudo ...

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  9. De todo modo bem escritos são os seus sonhos. Considere a idéia de publica-los algum dia. No fundo, acho que todo mundo tem um pouco de Pablo dentro de si. No meu caso, fico com a parte de rir das desgraças...do mundo e de si.

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  10. Realmente parabéns pelos blog, você não é só um grande músico, mas é também um grande explorador da psicologia. Sempre que venho aqui ler fico bastante entusiasmado, seu texto sobre a fase anal do desenvolvimento psicosexual foi incrível, não tinha pensado nessa relação com as emoções como você colocou, realmente muito bom. Concordo que você poderia considerar um livro ou algo do gênero, falando em termos mais cotidianos "vc leva jeito pra coisa". E lendo vejo tantos pontos em comum, acho que é por isso que te admiro tanto. Parabéns Dr Erich Mariani

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  11. - Deixar para os meus heróis escreverem livros. Eu apenas publico os meus sonhos.


    Seus heróis nada mais faziam do que publicar seus próprios sonhos, como você mesmo faz. Porém alguns sonhos acabaram se tornando maiores que eles mesmos, e surgiram os seus livros. Quem sabe, você se torne o herói de alguém daqui algumas gerações.
    (Espero que seje na minha! rs)

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