segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Fase anal

Nesse instante, meu corpo é tomado por uma onda de terror, sinto meus dedos congelarem, e o curso de meu pensamento acelerar. Meu coração dispara quando não consigo reconhecer o lugar em que me encontro. Não estou no quarto do hotel, muito menos deitado em uma cama. Como se já não bastasse minha percepção temporal que agora era atemporal, minha percepção espacial também devia estar em outro lugar, pois só agora percebi que estava submerso, havia água em todos os lugares. Me encontrava deitado dentro de uma banheira. A verdadeira alma ainda estava bêbada, o corpo estava de ressaca, a paranóia se esperneia como um gato que leva um banho de água gelada e como um pendulo, minha cabeça é atirada para trás e minhas pernas se esticam quase flutuando. Água, elemento natural do jogo. Estava gelada. Preciso de um cigarro, ou melhor, preciso de um maço inteiro deles. Desespero. Sempre acreditei em lendas urbanas. Acredito no Dumbo, acredito na Sininho, acredito em espíritos de carga negativa que conversam com criancinhas com sangue de médium herdados por hereditariedade sob a forma materializada de um bonequinho indefeso. Acredito no bicho papão, nos três porquinhos e acredito em lendas urbanas. Especialmente aqueles de que mais temem os que bebem. Como, por exemplo, a que cu de bêbado não tem dono e a que depois do Revelion, ou do natal para os que não tem família, arrancam teus rins para vender no mercado negro e depois te jogam em uma banheira de gelo cheio de pontos e comprimidos e analgésicos. Anal – Ges – Icos. Hum... Lacan diria que estou fazendo uma representação lingüística para dar um search no inconsciente e através dele lembrar do que sonhei, ou que de fato aconteceu e eu achei que sonhava. Pois embora não me lembre de nada, agora tenho a recordação de ontem ter falado eloquentemente sobre cu, sobre aprender a dançar Jazz, e sobre a hipocrisia dos porcos e indulgentes no século quinze. Nesse momento, o pânico começa a diminuir como o crepúsculo de um dia ruim. Percebo que não obstante eu tenha acordado em um lugar inusitado, já não o é tão assustador, pois com a mente no lugar e o medo dentro da gaveta, posso discernir que essa não é uma banheira em um prostíbulo, ou na sala de atividades secreta da CIA, e sim a banheira do quarto de hotel duas estrelas e meia. Estou salvo. Apalpo os rins, e eles estão exatamente aonde deveriam estar. Que alívio. Saio da água como me sentindo igual ao homem elefante, completamente enrugado, com os cabelos pendendo sobre a cara disforme. Me enrolo em um roupão e vou atrás do cigarro que deixei na varanda e... Puz! Que cheiro terrível é este? Uma névoa pútrida paira sobre o quarto. Cheiro de merda de gato ou da merda de uma ninhada inteira de gatinhos mortos. Chego a dramática conclusão que o cheiro vem da cama. Mais precisamente de dentro de mim, para a cama, para o eflúvio dos ares que agora asfixiam qualquer olfato humano. Como se não bastasse o cheiro nauseabundo do jantar já em estado de putrefação, haviam pilhas enormes de guimbas de cigarro pelo chão, latas de cerveja vazias e um borrão. Livros espalhados por todo o canto molhados ou secos, um borrão indecifrável, que no escuro parecia a presença de um espírito maligno na parede. Deve ser a aura podre de Ramnsés segundo. Ta ai uma boa explicação para eu ter dormido na banheira. Vomitei enquanto dormia. Não sei tocar guitarra como Jimmy Hendrix, mas tenho a habilidade de não sufocar no próprio vomito enquanto estou a dormir. Deveria ganhar um premio por isso. Pego um maço de cigarro, a carteira e o telefone celular e sai do quarto de roupão para tomar um pouco de ar fresco. No corredor esbarro com a mulher da arrumação. Peço desculpas a ela, pelo episódio do dicionário e digo que hoje ficaria muito grato pela arrumação, que certamente lhe custaria seus últimos resquícios de humilhação e boa vontade para como os tipos peculiares como o meu. Não realmente me importo muito com o que ela vai pensar. Só quero que o quarto fique limpo, ou menos sujo. O borrão era assustador. Nunca fui de me incomodar muito com coisas sobrenaturais, mas aquilo era demais. Eu sou do tipo que nos três primeiros anos de vida me apeguei a fase anal, marcado pelo interesse e prazer de reter e expelir a fezes. O tipo anal pode pode ter seu prazer tanto concentrado em reter seus afetos, atos e pensamentos, como no expelir, expulsar abruptamente esses elementos psíquicos. Os traços de meu caráter obsessivo e compulsivo, a tendência a avareza, ao desejo de controlar a mim mesmo e aos outros, assim como tendências a fantasia e onipotência, são associados a esse perfil anal. De qualquer forma, a moça da arrumação que deve se uma boqueteira, do perfil oral, ou fálico e apesar de passiva, a esta altura deve estar pedindo demissão. Não poso fazer nada. Eu pago meus impostos.

6 comentários:

  1. Me encontro nas suas músicas, nos seus textos. São tão intensos que consigo sentir na ponta dos meus dedos a expressão e a profundidade de suas palavras.
    Parabéns.

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  2. Seus textos,suas musicas,nenhuma palavra a não ser perfeição pode explica-los ! não pare, mesmo que esteja morto !

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  3. Saber como são os sentimentos do artista é um privilégio que só os fãs do Erich podem ter.
    Continue com isso, pra sempre!

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